As opiniões relatadas no “desabafo” abaixo não representam a opinião da CRC!News.
Caso tenha interesse em relatar a sua história entre em contato pelo e-mail: contato@crcnews.com.br.
A sua identidade será totalmente preservada.
Era meados de 2020, a pandemia tinha acabado de se instalar com força, nos assolando e maltratando a todos. Desnecessário entrar em detalhes sobre essa que foi uma das maiores crises que vivemos. Eu já trabalhava como AAI em um escritório da XP em minha região, porém pensava em fazer uma mudança, sentia-me num beco sem saída e alguns erros de gestão tomados pelos sócios me motivaram a ir ao mercado em busca de uma nova oportunidade, bem no meio dessa crise.
Fui indicado a fazer uma entrevista no escritório que vou chamar de “Escritório M”, um dos maiores da rede da XP, integrante do G20 e selo Great Places to Work. Algo que por si só já é empolgante e desafiador. Após algumas rodadas de conversas, para minha alegria fui convidado a fazer parte do time de assessores! Senti uma combinação de alegria e orgulho, tinha expectativa de ser valorizado, ganhar bem, e mais que isso, era um reconhecimento da minha capacidade profissional.
Ah que doce ilusão! Mal sabia o que me esperava!
Ao entrar para o Escritório M, a mensagem era que os assessores ganhavam muito bem e tanto os profissionais quanto os clientes estavam muito satisfeitos com a qualidade do ambiente de trabalho, a estrutura e o atendimento. Todo mundo em teoria adorava trabalhar lá e o ambiente era ótimo. Mas havia um lado que ninguém contava. O escritório possuia uma cultura muito forte de venda de produtos, principalmente ofertas públicas, além de práticas e rotinas bastante semelhantes a bancos e seguia à risca uma metodologia de gestão trazida pela renomada consultoria Falconi.
Quando me dei conta, eu estava imerso nessa cultura e havia me tornado algo parecido a um funcionário PJ de uma agência bancária. Autonomia era ZERO. Eu me lembrava que era autônomo só na hora de receber as comissões, e na hora de pagar do meu bolso por todos os custos da profissão. No dia a dia, tinha praticamente todas as cobranças e obrigações de um funcionário, era exigido trabalho presencial, o home office era liberado 1x por semana, tínhamos chefe, chefe do chefe, muitas reuniões, metas para bater, números disso, números daquilo e bastante pressão por resultados. Só estava faltando um relógio de ponto na entrada. A título de curiosidade, o escritório não gostava da palavra “metas” então chamávamos de “objetivos”, e o chefe era o “Head”.
A rotina dos assessores incluía uma prática herdada da Falconi que eu considero simplesmente inacreditável, além de absolutamente irritante: uma reunião individual e semanal de acompanhamento, em que o assessor se senta junto ao chefe, digo, ao Head, para comparar todos os números atingidos versus suas metas, ops, digo objetivos. Por exemplo o número de novos prospects, reuniões executadas com clientes ou prospects, produtos vendidos, contas abertas, montantes captados, tudo. Eles nos diziam com muita ternura que o objetivo da reunião era nos ajudar, mas na prática era pura pressão e cobrança de performance. Vou repetir, essa reunião era TODA SEMANA! Nem nos meus tempos de CLT eu passava por isso, passou a acontecer depois de virar “autônomo”. A vida tem mesmo uma boa dose de ironia.
O assessor que ganhava muito dinheiro no escritório era o assessor “vendedor sangue nos olhos”, ou aquele que girava muito a carteira do cliente. O assessor que era mais conservador e cuidadoso com os clientes, que era seletivo e não vendia qualquer produto indiscriminadamente para qualquer um, como era meu caso, esse dificilmente ganhava dinheiro. Para ganhar dinheiro, era preciso vender muito, mas muito mesmo, com volumes consideráveis, inclusive porque o escritório praticava uma das médias de repasse mais baixas do mercado. Presenciei assessores contando meias verdades, enrolando clientes e omitindo informações com a intenção de vender produtos que geram alto ROA para o escritório. Eles batiam as metas. Eu não. Eles ganhavam muito dinheiro. Eu não.
Nesse escritório acontecia também algo muito engraçado. Assessores simplesmente desapareciam, como se fossem abduzidos por alienígenas. Ninguém falava nada. A pessoa sumia do quadro de funcionários e ponto. O assunto “demissão” era um verdadeiro tabu na empresa. Ninguém nunca mandou um email ou mensagem de despedida, muito menos fez isso pessoalmente. Nós ficávamos sabendo que “fulano saiu” ou “beltrana foi desligada” por fofoca de corredor e “Rádio Faria Lima”. Mas as vezes demorava dias ou semanas para percebermos. Acontecia até mesmo nas demissões de sócios com partnership, eles também não eram poupados. Meu palpite é que a empresa queria abafar o alto índice de rotatividade do quadro de assessores.
Foi ficando cada vez mais claro que eu não estava no lugar certo. Após muitos meses de trabalho, eu estava bastante esgotado e de saco cheio, simplesmente não suportava mais trabalhar lá. Não tínhamos 1 dia de paz, era todo santo dia aquela pilha para vender ofertas públicas, COEs, seguros, captação, receita, reuniões e mais reuniões com “bora acelerar” e “foguete não tem marcha ré”. E para piorar um pouco, na minha proposta de entrada eu havia assinado um contrato que me obrigava a ficar ao menos 2 anos, caso contrário eu estaria sujeito a uma multa bastante salgada que eu não poderia arcar.
Tive que aguentar os 24 meses. Ainda assim, mantive minha seriedade e profissionalismo até o último minuto e não dei qualquer motivo para críticas. Quando chegou ao fim dessa restrição, eu já estava com uma proposta em outro lugar e resolvi pedir minha libertação, digo, minha demissão.
Foi aí que descobri a cereja do bolo. Está se tornando um padrão no mercado que, mesmo possuindo apenas 1 cota para cumprir tabela, muitos assessores são submetidos a contratos com cláusulas leoninas e absurdas de “Não Competição”, “Não aliciamento”, multas astronômicas e todo tipo de abuso, com escritórios que chegam ao cúmulo de querer limitar até geograficamente a área de trabalho do assessor após sua saída.
No Escritório M não era diferente e descobri que no meio do contrato social de mais de 100 páginas havia uma cláusula escondida de “Não competição” e que apesar de ser algo bastante questionável juridicamente foi usada para me intimidar. Minha saída foi bastante conturbada e desgastante, no ato do meu pedido de demissão me avisaram que eu não poderia levar meus clientes e poderia ter que ficar até 2 meses sem trabalhar, sem direito a nenhum tipo de indenização. Fiquei revoltado com isso e decidi que não iria me submeter a esse abuso. Sai e convidei meus clientes a irem comigo, mesmo tomando em todos eles o haircut de 75/25 imposto pela XP.
(Aproveito para dar um recado a todos os assessores: qualquer cláusula de “Não competição” deve necessariamente incluir uma devida indenização ao profissional durante todo o período da “Não Competição”, caso contrário é considerada nula pela Justiça. Os escritórios fingem não saber e convenientemente se “esquecem” de incluir a indenização. Não se deixem intimidar !)
Como consequência, tive que lidar com assédio moral, exigência de uma multa absurda (que eu me recusei a pagar, obviamente), recebi notificações extra judiciais, fiquei sem receber o último mês trabalhado, e avisaram que não iriam me pagar. Mobilizaram no mesmo dia uma equipe de assessores para tentar, sem sucesso, reter meus clientes numa corrida contra o tempo. Foram dias bem nervosos e vez ou outra precisei da ajuda do amigo rivotril para dormir. Além disso, demoraram quase 3 meses para me tirar do contrato social, dificultando muito a continuidade da minha vida profissional.
Fiquei com uma grande dúvida, como é que esse escritório conseguiu ganhar um selo “Great Places to Work” ? É surreal! Será que esse selo é realmente confiável? Da pior forma, descobri que todo o discurso bonito que me foi vendido na contratação não passava de uma grande mentira.
Tudo isso foi ficando para trás, mas deixou marcas. Do ponto de vista financeiro, saí do escritório pior do que entrei, com “uma mão na frente outra atrás” como diz o ditado, virei freguês do cheque especial e levei alguns meses para me recuperar do baque.
Impossível passar por isso e não começar a repensar a carreira e o futuro.
Decidi abandonar esse modelo autônomo e passei a buscar uma oportunidade para voltar a trabalhar como CLT. Essa forma suja e desonesta de tratar o assessor que descrevi ao longo do texto é mais comum do que pensamos, e não quero me arriscar a passar por isso novamente. Nunca mais. Merecemos mais respeito.