Os fundos de investimento não possuem personalidade jurídica – embora possuam personalidade negocial, legitimidade processual e inscrição no CNPJ – e, por esse motivo, não poderiam figurar, em nome próprio, como titulares da propriedade de imóveis e veículos, ainda que com a finalidade específica de garantia.
É o que têm fundamentado alguns cartórios de registro de imóveis para negar o registro de contratos de alienação fiduciária que designam o Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC), em nome próprio, como o credor fiduciário.
Com a Lei da Liberdade Econômica, surgiu um novo argumento para defender a possibilidade de FIDCs figurarem como proprietários fiduciários de bens ofertados em garantia por cedentes, coobrigados ou devedores, conforme o disposto no art. 1.368-E do Código Civil, introduzido pela Lei Federal n° 13.874, de 20 de setembro de 2019:
“Art. 1.368-E. Os fundos de investimento respondem diretamente pelas obrigações legais e contratuais por eles assumidas, e os prestadores de serviço não respondem por essas obrigações, mas respondem pelos prejuízos que causarem quando procederem com dolo ou má-fé.” (grifamos)
Nossa prática mostra, no entanto, que tal disposição legal ainda não foi suficiente para mudar o entendimento dos cartórios que negam o registro em nome do FIDC.
A solução para esse imbróglio pode estar na nova Resolução CVM n° 175, de 23 de dezembro de 2022, com entrada em vigor em 3 de abril de 2023, que dispõe sobre a constituição, funcionamento e a divulgação de informações dos fundos de investimento, bem como sobre a prestação de serviços para os fundos, com o Anexo Normativo II dedicado a FIDC.
Diz o art. 43 do Anexo II:
“Art. 43. É vedado ao administrador e ao gestor, em suas respectivas esferas de atuação, aceitar que as garantias em favor da classe sejam formalizadas em nome de terceiros que não representem o fundo, ressalvada a possibilidade de formalização de garantias em favor do administrador, gestor ou terceiros que representem o fundo como titular da garantia, que devem diligenciar para segregá-las adequadamente dos seus próprios patrimônios.”
Em nossa opinião, tais funções já poderiam ser delegadas a qualquer prestador de serviços do FIDC, independentemente de expressa autorização do regulador.
A Resolução CVM n° 175, de qualquer forma, acaba de consolidar o entendimento de que as garantias conferidas a FIDC podem ser constituídas em nome do administrador, do gestor ou de outro prestador de serviços que atue em nome do fundo como titular da garantia.
Esse outro prestador, em nosso entendimento, poderia ser a consultoria especializada ou o agente de cobrança – prestadores de serviços geralmente contratados por FIDC. Ou um “agente de garantia” especialmente contratado para essa finalidade, na medida em que a referida resolução autoriza a contratação de outros serviços no interesse do fundo, conforme autorizado pelo § 4º, do art. 85.
O agente de cobrança ou a consultoria especializada exerceriam essa função de agente de garantia sob as justificativas de que (i) a existência de garantias para cobrir operações de FIDC ou mesmo especificamente vinculadas a títulos de crédito são uma realidade, (ii) o FIDC não teria personalidade jurídica para assumir ativos em nome próprio e (iii) as normas aplicáveis a tais fundos permitem expressamente a contratação desse serviço (Resolução CVM n° 175, art. 85, § 4º, c.c. Anexo Normativo II, art. 43).
Independentemente da expressa autorização do regulador, recomendamos, adicionalmente, que:
- (a) o regulamento e o contrato de cessão padrão do fundo prevejam expressamente a possibilidade de qualquer prestador de serviços figurar como proprietário fiduciário em relação aos bens ofertados em garantia;
- (b) no regulamento, essa autorização poderá constar em definição sobre contrato de cobrança, nas disposições a respeito do agente de cobrança, assim como na política de cobrança do Fundo;
- (c) no contrato de cessão, seja inserida cláusula com a expressa autorização da constituição das garantias em nome dos prestadores de serviços do fundo;
- (d) e que no contrato de alienação fiduciária, seja qual for o tipo de garantia, conste (1º) na qualificação, que o fiduciário será o administrador, gestor, consultoria especializada ou agente de cobrança do FIDC, (2º) na descrição da obrigação garantida, que a garantia é prestada para cobrir o contrato de cessão celebrado com o FIDC, para o qual o prestador de serviços designado atua nos termos do regulamento, e (3º) uma cláusula ressaltando que a garantia constituída não integra o patrimônio do prestador de serviços, que não irá compor a lista de bens e direitos de sua propriedade para efeito de liquidação judicial ou extrajudicial, não poderá ser oferecida em garantia de débitos de suas operações, não será passível de execução por seus credores, por mais privilegiados que possam ser, e que será constituída, exclusivamente, em garantia ao instrumento objeto das obrigações garantidas celebrado com o FIDC.
A expressa autorização do regulador para que as garantias concedidas a FIDC sejam constituídas em nome de prestadores de serviços é uma boa notícia aos departamentos jurídicos dos fundos. Ótima iniciativa da CVM, que se antecipou ao Marco Legal das Garantias, Projeto de Lei n° 4188/2021, que está parado no Senado desde junho de 2022.
Marcelo Augusto de Barros é advogado do escritório Teixeira Fortes Advogados Associados.
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