João Pedro Nascimento, presidente da CVM (Comissão de Valores Mobiliários), reflete sobre o novo marco regulatório de fundos, publicado pela autarquia em 23 de dezembro. A Resolução 175, que é tema do encontro “Fala, CVM: nova regulação de fundos”, trouxe mudanças importantes para os fundos de investimento.
Em entrevista exclusiva à ANBIMA, ele comenta a participação ativa do mercado na elaboração da norma, as inovações e os impactos das regras para a indústria e a atenção crescente sobre ESG (ambientais, sociais e de governança) e criptoativos
Veja a íntegra da entrevista:
Qual é a sua avaliação inicial sobre o Novo Marco Regulatório dos Fundos de Investimento? Quais são os principais méritos da Resolução CVM 175/22?
A Resolução CVM 175/22 traz modernização e inovação ao ambiente regulatório dos fundos de investimento no Brasil, com uma técnica normativa até então inédita.
Seguimos uma metodologia inovadora, em que adotamos normas gerais aplicáveis a todos os fundos de investimento, que são complementadas por regras em específico contidas em cada um dos anexos, que regularão as diferentes categorias de fundos de investimento.
Neste primeiro momento, a regra está sendo complementada pelos anexos dos FIFs -Fundos de Investimento Financeiro (Anexo Normativo I) e dos FIDCs – Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (Anexo Normativo II), com a conveniência e a flexibilidade de poder ser posteriormente complementada por outras categorias de fundos.
Até Abril de 2023, quando a Resolução CVM 175/22 entrará em vigor, pretendemos incluir os Anexos Normativos referentes aos FIIs – Fundos de Investimento Imobiliário (Anexo Normativo III), dos Fundos de Investimento Previdenciário (Anexo Normativo IV), ETFs – Fundos de Investimentos Negociados em Bolsa (Anexo Normativo V), Fundos Mútuos de Privatização-FGTS (Anexo Normativo VI), Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (Anexo Normativo VII), Fundo de Aposentadoria Programada Individual (Anexo Normativo VIII), FMAI – Fundos Mútuos de Ações Incentivadas (Anexo Normativo IX), Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Anexo Normativo X), FIDC-FIPS (Anexo Normativo XI) e Fundos Previdenciários (Anexo Normativo XII).
Desta maneira, a Resolução CVM 175/22 poderá ser atualizada, sempre que necessário, por meio de anexos que se sucederão, mantendo-se ao longo do tempo um arcabouço único e objetivo.
Com este enfoque moderno e inovador, a nossa ideia é facilitar o entendimento e contribuir com a redução do custo de observância regulatória. A abordagem será recebida com bons olhos pelo mercado, que passará a ter um arcabouço normativo mais simples e funcional, com a consolidação em regra única de todos os normativos sobre fundos de investimento.
A Resolução CVM 175/22 é resultado de uma audiência pública que teve o maior número de contribuições do mercado, ou seja, um trabalho colaborativo. Como a CVM avalia esse projeto e por que acredita que houve tanto interesse dos players?
Eu costumo dizer que: “Política pública bem-feita é aquela que envolve os agentes de mercado em sua concepção”. Essa é, historicamente, a forma de atuação da CVM e que foi prestigiada novamente no processo de edição da Resolução CVM 175/22.
Os resultados desta audiência pública demonstram o quanto a CVM se dedica para aproveitar as boas contribuições feitas por agentes de mercado, públicos e privados, que respondem às nossas audiências e consultas públicas.
O resultado é a entrega ao mercado de um produto de altíssima qualidade, que foi “feito a quatro mãos” (ou, melhor dizendo, feito a “muitas mãos”), conduzido pelas Áreas Técnicas da nossa Autarquia, com a posterior contribuição do Colegiado da CVM.
Este projeto resultou na revogação de 38 normas esparsas, que foram sistematizadas e organizadas em uma única norma, a nossa Resolução CVM 175/22.
A grande quantidade de contribuições está justamente relacionada à importância da nova norma. O mercado realizou comentários relevantes que foram contemplados na modernização da regra. A CVM tradicionalmente valoriza a interlocução com outros atores e os atos normativos dedicam muita atenção às audiências públicas, o que motiva os agentes a participarem.
No caso da indústria de fundos de investimento do Brasil, estamos falando de um mercado que tem, aproximadamente, 28 mil fundos registrados e patrimônio de aproximadamente R$ 7,5 trilhões. O Brasil tem a 4ª maior indústria de fundos de investimento do mundo, que traz protagonismo e respeitabilidade ao mercado de capitais do Brasil. Um segmento tão grandioso merecia uma entrega normativa à altura.
Os benefícios da nova regra são claros para o mercado, como ganho de eficiência e maior flexibilidade. Quais são as principais vantagens que impactam, diretamente ou indiretamente, a vida dos investidores?
A nova regra traz não apenas maior segurança para o patrimônio dos investidores, como também oferece mais direitos, poderes e prerrogativas ao público investidor, que tem novas possibilidades e opções de investimentos, com segurança e aderência às temáticas de proteção ao investidor.
Como exemplo: (i) passamos a permitir que os investidores de varejo possam investir em FIDCs; (ii) flexibilizamos para os fundos a possibilidade de investirem até 100% do seu patrimônio em ativos no exterior, mesmo aqueles destinados a investidores não qualificados; e (iii) autorizamos a possibilidade de os regulamentos preverem a limitação de responsabilidade de cada cotista ao valor de suas respectivas cotas.
Além disso, outros benefícios estão relacionados a melhores informações sobre a cadeia de remuneração dos prestadores de serviços e a facilitação da participação política.
O Anexo Normativo I referente aos FIFs (Ações, Cambiais, Multimercado e em Renda Fixa) também apresenta novidades relevantes, tais como: (i) a possibilidade de investimento em ativos ambientais (inclusive crédito de carbono) e em criptoativos; (ii) a ampliação de limites de concentração por tipo de ativo financeiro; e (iii) o estabelecimento de limites de exposição ao risco de capital.
Desde a Lei da Liberdade Econômica, que promoveu alterações substanciais nas regras aplicáveis a fundos de investimento, o mercado aguardava a solução a ser apresentada pela CVM para algumas novidades lá indicadas. Qual é a sua avaliação sobre as novidades trazidas pela Resolução CVM 175/22 a este respeito?
A Lei da Liberdade Econômica trouxe inovações para os fundos de investimento, que nós buscamos refletir na nossa Resolução 175/22.
Já falamos acima sobre a questão da limitação de responsabilidade, que pode ser prevista nos regulamentos como forma de proteção patrimonial dos cotistas, mas eu diria que as principais novidades são provenientes da Lei da Liberdade Econômica são: (i) a possibilidade de os fundos contarem com classes de cotas com patrimônios segregados por cada classe; e (ii) a aplicação do instituto da insolvência civil aos fundos.
A questão da classe de cotas com patrimônio segregados é uma inovação importante que nós estamos fazendo de maneira responsável e gradativa. Há interfaces importantes com questões tributárias, que ainda estão sendo aprimoradas. Por conta disso, adotamos uma solução que permite a convivência de diferentes classes da mesma categoria de fundos, mas que impede que a criação de nova classe altere o regime tributário do fundo ou de suas demais classes.
Veja-se, por exemplo, o caso dos FIFs – Fundos de Investimento Financeiro. Em vez de constituírem vários FIFs com estratégias de investimentos diversificadas, a partir da Resolução CVM nº 175/2022 torna-se possível a existência de apenas um FIF com classes de cotas destinadas a diferentes estratégias de aplicação como Ações, Produtos Cambiais, Multimercado e Renda Fixa.
Portanto, em função de suas particularidades, não é possível que classes de cotas de diferentes reguladas por diferentes Anexos Normativos convivam no mesmo fundo, mas que classes de cotas da mesma categoria, ou seja, reguladas mesmo Anexo normativo, possam livremente coexistir.
A indústria de fundos evoluiu nos últimos anos e temas emergentes, como a Agenda ESG e os criptoativos foram contemplados na nova regra. Com um marco regulatório definido, como vê o amadurecimento destas práticas no mercado?
Eu costumo dizer que: “O futuro é verde e digital!”. O Mercado de Capitais está atento às oportunidades decorrentes destes temas emergentes e a CVM, em sua condição de regulador e desenvolvedor do Mercado de Capitais, está dando a sua contribuição para a construção de um país mais socialmente responsável e economicamente desenvolvido.
A agenda ESG também foi prestigiada pela nossa Resolução CVM 175/22, que está restringindo a utilização de termos correlatos às finanças sustentáveis na denominação aos fundos.
A solução adotada por nós nesta temática de investimentos socioambientais é pouco invasiva, com foco na prestação de informações ao público investidor e no combate ao greenwashing. Estamos seguindo metodologia internacional semelhante às práticas adotadas por outros países, com a criação de fronteiras seguras para o Mercado de Capitais se desenvolver em direção à sustentabilidade.
Sobre os criptoativos, a regra prevê que a negociação dos ativos, no Brasil ou no exterior, seja realizada em “exchanges” autorizadas por reguladores financeiros, de forma a garantir que as negociações sejam realizadas em ambientes regulados. O objetivo é que os fundos possam operar nesse segmento de mercado, porém, sem fragilizar os controles relacionados à existência, integridade e titularidade dos ativos.
Aliás, volto a dizer que a CVM pode e deve ser o órgão responsável pela regulação dos criptoativos que se enquadrem como valores mobiliários, como exposto, inclusive, no Parecer de Orientação CVM 40/22.
A CVM e o BC vêm trabalhando em conjunto na pauta dos criptoativos, com diálogo e cooperação constante entre os dirigentes das instituições, reconhecendo que a criptoeconomia demandará atuação tanto do BC quanto da CVM, dentro das suas respectivas esferas de competência.
Leia mais
CVM abre 3° processo para apurar rombo da Americanas
Contraponto. Desabafo de um assessor
Cade amplia prazo de resposta em inquérito administrativo contra a XP
Quais desafios acredita que o mercado terá na adaptação da nova regra?
Essa regra é fruto de uma ampla e diversa troca de conhecimentos com o mercado. Por conta disso, acho que haverá fácil adaptação. Além disso, o arcabouço único e objetivo facilita o entendimento da indústria e contribui na redução do chamado custo de observância regulatória. Com menos custos, o mercado terá mais oportunidades.
Dito isso, há dois desafios principais. O primeiro está relacionado a eventual necessidade de novos arranjos, comerciais e operacionais, entre os prestadores de serviços e o desenvolvimento de protocolos e processos deles decorrentes. Adicionalmente, outro fator é o aprimoramento dos sistemas tecnológicos para atender a regulamentação de forma mais eficiente.
Como você vê a indústria de fundos no futuro/pós-consolidação da Resolução CVM 175/22? Para além dos anexos normativas já citados acima, quais são as próximas categorias de fundo nas quais a CVM trabalhará para incluir a este arcabouço?
A Agenda Regulatória de 2023 prevê expressamente que, neste ano, nós iremos submeter à consulta pública, com dispensa dos procedimentos de AIR (Análise de Impacto Regulatório), os aprimoramentos ao Fiagro (Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais).
Os Fiagros foram criados pela Lei 14.130/21 e, incialmente, trazidos para o ambiente regulado da CVM por meio da Resolução CVM 39/21, de forma temporária e em caráter experimental. Inicialmente, a CVM trouxe apenas os Fiagros de Direitos Creditórios (Fiagro-FIDC), os Fiagros Imobiliários (Fiagro-FII) e os FIAGROS Participações (Fiagro-FIP) e a experiência tem sido bem-sucedida.
A expectativa da Agenda Regulatória de 2023 é aprofundar esta pauta, ampliar oportunidades e, dentre outros temas, também trazer aderência às discussões de finanças sustentáveis para os Fiagros.
Além dos Fiagros, a Agenda Regulatória de 2023 também contempla os Fundos de investimento para Projetos de Reciclagem (Pro-Recicle), conforme previstos na Lei 14.260/21, que são novas modalidades de captação de recursos para aplicação em projetos de reutilização, tratamento e reciclagem de resíduos sólidos produzidos no Brasil.
Tratam-se de fundos de investimento destinados a segmento que, para além de auxiliar nas pautas de finanças sustentáveis e controle da mudança climática, ainda tem uma enorme capacidade de contribuírem com o desenvolvimento econômico e social do Brasil, com geração de empregos e oportunidades em microempresas, pequenas empresas, cooperativas e empreendimentos sociais solidários que atuem em atividades de reciclagem.