Nos vinte anos que separam o primeiro governo Lula, em 2003, e o terceiro mandato do ex-sindicalista, a partir de 2023, o mercado de capitais evoluiu como nunca antes na história do Brasil. Mas, a despeito dos diversos IPOs (sigla em inglês para oferta pública inicial de ações), do recorde de investidores e do surgimento de novos produtos ao longo dos anos, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia responsável pela regulação do mercado, diminuiu. Não há um concurso público desde 2010 e a autonomia financeira prevista em lei nunca aconteceu na prática.
O entendimento é o de que a questão do financiamento da autarquia tende a ser mais delicada em meio às discussões sobre os gastos públicos do novo governo. Por outro lado, interlocutores do governo de Luiz Inácio Lula da Silva já teriam acenado que a realização de um concurso público seria viável, apurou o Valor.
Foi a partir dos anos 2000, no primeiro mandato de Lula, que o mercado de capitais brasileiro começou a deslanchar. Na época, foi criado o Novo Mercado, que estabeleceu regras mais rígidas de governança corporativa e maior transparência para os participantes. Nos anos seguintes, em 2006 e 2007, o país teve seu primeiro “boom” de IPOs, consolidando a nova fase. Um novo recorde ocorreu entre 2020 e 2021, com 73 operações.
Atualmente há quase 700 companhias listadas na B3, que representam uma fração dos 78.162 regulados pela autoridade do mercado de capitais: são fundos de investimentos, corretoras, administradores, analistas, consultores, assessores de investimentos, distribuidores, agências de rating, securitizadoras, entre outros. A autarquia é um órgão superavitário. Anualmente, arrecada cerca de R$ 800 milhões com taxas de fiscalização, um tributo vinculado e que funciona como uma contrapartida cobrada dos agentes de mercado pelo serviço desempenhado pelo regulador. O orçamento ordinário é de cerca de R$ 260 milhões e o discricionário, historicamente, fica em torno de R$ 25 milhões.
A lei 10.303, de 2001, passou a prever que recursos da arrecadação da taxa de fiscalização possam ser utilizados para o custeio das atividades da autarquia, mas essa autonomia financeira não existe de fato: os recursos vão para a conta única do Tesouro Nacional. A CVM precisa elaborar sua proposta orçamentária e enviá-la ao Ministério da Economia, que pode alterá-la. O orçamento geral passa pelo Congresso Nacional, que por sua vez também pode modificar os valores. Em 2022, a autarquia correu o risco de sofrer um corte de mais de 50% do valor, mas conseguiu recompô-lo integralmente.
A CVM vem alertando, nos últimos anos, para o aumento do nível de risco relacionado à carência de pessoal. Houve movimentação de funcionários do BNDES e de outras estatais para a autarquia, o que é insuficiente frente ao crescimento do mercado. O atual presidente da autarquia, João Pedro Nascimento, falava dos problemas de financiamento e de pessoal antes de assumir o cargo, em linha com o discurso de antecessores como Marcelo Barbosa e Leonardo Pereira.
“A CVM chegou em uma situação limite. Precisamos muito de um concurso público para estarmos preparados para atender um mercado que cresce em tamanho e complexidade”, afirma Nascimento. Este ano, foram iniciados os preparativos para a realização de um concurso em 2023. E agora, para que realmente se concretize, será necessário o aval do governo Lula. O assunto é prioritário a ser tratado junto à equipe de transição de governo.
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Do lado do financiamento, o atual presidente da CVM pretende criar um fundo de aprimoramento do mercado de capitais, com parte dos recursos das taxas de fiscalização, o que também depende de Brasília. “É importante conseguirmos prever que determinado montante será destinado ao orçamento da CVM. Ou seja, previsibilidade. Assim, poderemos nos organizar para, da melhor maneira, aproveitar tais recursos.”
Em resposta à Secretaria Especial do Tesouro e Orçamento, a CVM indicou representantes que atuarão no atendimento de demandas da equipe de transição, incluindo o próprio presidente.
Quem já se sentou na principal cadeira da CVM sabe das dificuldades que o órgão enfrenta. A economista Maria Helena Santana ocupou o cargo entre 2007 e 2012, quando o mercado era uma fração do tamanho atual. “[Na época] Não conseguimos que uma parte do dinheiro ficasse com a CVM e, proporcionalmente, hoje, o valor que fica nas mãos do órgão é menor ainda”, afirma. A autarquia precisa ter o mínimo de previsibilidade para fazer planos de longo prazo, defende.
Foi na gestão de Marcelo Trindade, antecessor de Santana, que a CVM teve o financiamento mais assegurado. O advogado assumiu o posto em 2004, em substituição a Luiz Leonardo Cantidiano. Diante da dificuldade de relacionamento com o Ministério da Fazenda, Cantidiano renunciou ao cargo. “Por ter gerado essa grave consequência, o governo caiu em si e assegurou as condições de funcionamento da autarquia, do ponto de vista da autonomia e do financiamento”, conta Trindade.
Depois do episódio com Cantidiano, não há mais relatos de interferências de governos na CVM, que segue com seu trabalho de forma independente. “Tenho esperança que os bons tempos voltem, e portanto vamos torcer para que o novo governo lembre de sua experiência bem-sucedida e que, com isso, as coisas funcionem bem”, afirma Trindade.
Outro problema histórico que a CVM enfrenta é a lentidão na definição de novos membros da diretoria, que têm mandatos fixos. No governo Bolsonaro, por exemplo, o colegiado passou boa parte de 2020 com apenas quatro membros, e de 2021, com apenas três, de um total de cinco. Nascimento foi uma exceção e assumiu o cargo imediatamente após a saída de Barbosa, o antecessor.
Mantendo-se a composição atual, a próxima vaga no colegiado deve ocorrer no fim de 2023, após o encerramento do mandato da diretora Flávia Perlingeiro. Do lado da atuação da CVM, advogados e ex-diretores da autarquia ouvidos pelo Valor afirmam que há independência para estabelecer uma agenda regulatória liberal e proferir decisões. “O perfil do novo ministro fará toda a diferença nas indicações e nos projetos para a CVM. O João Pedro [Nascimento] vai se esforçar muito para construir um bom relacionamento”, afirma um ex-diretor.
Texto publicado originalmente no Valor Econômico.