Organizar a vida financeira não é tarefa simples no Brasil. Prova disso é que mais de 64 milhões de pessoas estavam com contas vencidas em setembro segundo dados da CNDL (Confederação Nacional dos Dirigentes Lojistas), o que corresponde a 40% da população adulta do país. Inúmeros fatores contribuem para isso, como o baixo valor do salário mínimo (vide quadro 1), condições pouco favoráveis para se aposentar (quadro 2) e uma carga tributária elevada (quadro 3) que não se reflete em boa posição no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) (quadro 4).
Com tantos desafios, não surpreende que 52% dos brasileiros se julguem incapazes de articular um plano para concretizar suas metas de médio e longo prazo, conforme apontam dados da Leve, fintech de educação financeira, divulgados no início de 2022. Felizmente, existe um profissional ainda pouco conhecido no Brasil, mas bastante relevante em outras partes do mundo, que pode ser de grande ajuda nesta missão: o planejador financeiro.
Enquanto a maioria das funções do ramo das finanças foca em apenas um aspecto da vida do cliente, o planejador procura ter uma atuação completa, abrangendo um conjunto de seis diferentes áreas: orçamento, portfólio de investimentos, gestão de riscos, tributos, aposentadoria e sucessão. Ao trabalhar todos esses aspectos de forma integrada, ele consegue promover uma verdadeira transformação na realidade financeira dos indivíduos.
Apesar do profissional ter grande importância em mercados como os Estados Unidos, que reúne mais de 100 mil pessoas com CFP® (Certified Financial Planner), principal certificação internacional do setor, a carreira ainda tem pouco espaço por aqui, onde somente 8,2 mil detém o selo. Como a profissão ainda não é regulada e a certificação é opcional no Brasil, a grande maioria dos que a possuem usam o título apenas como forma de distinção. Assim, fica impossível determinar quantos realmente exercem a função, embora a Planejar, entidade responsável pelo CFP® no Brasil, estime algo em torno de mil pessoas.
“Há 20 anos, quando o personal trainer surgiu, só artistas e pessoas muito ricas tinham acesso. Hoje, qualquer um pode contratar. Acredito que a mesma coisa irá se dar com o planejador financeiro. Será cada vez mais comum e normal as pessoas contarem com seus serviços”, projeta Paulo Colaferro, presidente da Planejar, em entrevista à CRC!News.
A associação promoveu na última segunda (24) a edição 2022 do seu congresso anual. Na ocasião, cerca de 600 pessoas se reuniram em um hotel na cidade de São Paulo para debater os rumos e tendências da profissão. “Em um país com tantas pessoas endividadas, disseminar a educação financeira e o trabalho do planejador são requisitos fundamentais para gerar autonomia na população”, opina Osvaldo Cervi, vice-presidente e coordenador da Comissão de Educação da Planejar.
Espécie rara
Na prática, ainda é difícil encontrar os chamados “planejadores puro sangue” no Brasil, ou seja, aqueles que de fato atuam apenas para o cliente, sem vínculos com uma instituição. Uma das maneiras de localizá-los é através de uma área de busca presente no próprio site da Planejar (https://planejar.org.br/busque-um-planejador/). Rejane Tamoto, planejadora financeira CFP®, é uma dessas raras profissionais. Segundo ela, os clientes geralmente procuram o serviço quando estão com dívidas, o desempenho dos investimentos não está bom ou eles não conseguem guardar dinheiro mesmo ganhando bem. “Muitos associam nosso trabalho a apenas um dos seis segmentos em que atuamos. Nosso desafio está em mostrar a importância de trabalhar todos os aspectos em conjunto”, revela.
Mais do que oferecer um atendimento amplo e que abrange toda a vida financeira da família, outra característica positiva do trabalho do planejador é a sua independência. Afinal, como a remuneração vem unicamente dos serviços prestados ao cliente, ele não fica sujeito a conflito de interesses. “O planejador tem uma atuação mais isenta por não ser remunerado via comissão em cima dos produtos negociados”, resume Jorge de Almeida SIlva, que além de ter CFP® é CEO e fundador da Fortuna Investimento.
Além do desconhecimento do público, uma das principais barreiras para popularizar a função no Brasil é seu custo elevado. Por ser um trabalho altamente especializado e que demanda conhecimentos profundos em áreas bastante distintas, o serviço costuma ser encontrado por valores acima de R$1 mil. Algumas iniciativas, no entanto, vem tentando democratizar o acesso. É o caso da SuperRico, que recentemente lançou planos de atendimento com valores bastante reduzidos, de até R$79 mensais.
Carlos Castro, CEO da SuperRico e planejador financeiro CFP®, explica a estratégia para reduzir o custo final e permitir que mais pessoas contratem este tipo de especialista. “Trabalhamos na formação de novos planejadores independentes. Ao mesmo tempo, investimos em uma metodologia eficaz e em tecnologia para a coleta e análise de dados, o que corresponde a 80% do tempo gasto nos atendimentos. Com a otimização, o profissional que lidava com cinco consegue dar atenção a mais de 100 clientes”, resume
Para entender um pouco melhor a dinâmica do trabalho do planejador, a CRC!News resolveu mergulhar em cada uma das suas seis áreas, mostrando como elas funcionam de modo isolado e de que forma a integração entre todas é capaz de promover uma verdadeira transformação na vida financeira do cliente e da sua família. Confira.
Assim como um personal trainer precisa entender os hábitos de saúde e os objetivos de quem o contrata antes de montar uma programação de exercícios, a atuação do planejador tem início com uma conversa para captar as expectativas e necessidades financeiras do cliente. Durante o processo, ele realiza a coleta de uma série de informações necessárias para traçar o plano, como idade, quanto os membros da família ganham, se eles estão empregados em regime CLT, quantidade de filhos e a intenção de ter novas crianças.
Nesta etapa, também se define como será o relacionamento com o cliente, estabelecendo valores, o modelo de remuneração (se fixo ou percentual sobre o patrimônio), a forma de pagamento (mensal ou em valor único para todo o projeto) e a periodicidade do acompanhamento.
Uma vez firmadas as regras, é chegada a hora do planejador entender o fluxo de caixa do cliente. Para isso, a pessoa deve registrar todas as despesas durante 30 dias. “O orçamento é a base para entender o estilo de vida das pessoas que integram a família e identificar hábitos que podem ser modificados para se chegar aos objetivos”, afirma Rogério Nakata, planejador financeiro CFP® independente da Economia Comportamental.
Segundo o especialista, as pessoas costumam fazer contabilidade mental. Entretanto, quando colocam no papel e comparam os valores reais com o que haviam estimado, a reação é de surpresa. “Muitas vezes, o endividamento está mais associado a fatores comportamentais do que a questões financeiras. Existem aqueles que gastam mais do que ganham para se recompensar pelo tempo dedicado ao trabalho”, cita.
Para tentar modificar os hábitos mais prejudiciais, Nakata estimula a reflexão e usa técnicas de coaching e programação neurolinguística, como no caso de uma família que acumulava mais de 10 empréstimos. “O casal ia ao mercado com fome, sem lista e não olhava o que já tinha na despensa. Assim, compravam coisas desnecessárias ou em quantidade inadequada. Também assinavam serviços de streaming que mal tinham tempo de assistir e possuíam planos de celular com limites muito além do utilizado. Fizemos cortes, trocamos as dívidas por taxas menores e a esposa aumentou a renda passando em um concurso. Após um ano, saíram da situação de dívida para começar a poupar”, resume.
Agora que o orçamento está organizado e as contas saíram do vermelho, surge uma nova questão: onde colocar o dinheiro que está sendo economizado? Entra em cena então a segunda etapa do trabalho do planejador, a gestão do portfólio de investimentos. Caso esse trabalho não seja executado de forma adequada, há o risco de uma carteira desequilibrada ou pouco alinhada com as necessidades da família. Com isso, o cliente não obtém os retornos esperados ou, o que é pior, acumula prejuízos que comprometem todo o plano.
Portanto, antes de iniciar essa fase, é preciso entender muito bem o tipo de risco que a pessoa tolera e quais os seus objetivos, o que ajudará a definir a necessidade de liquidez e se o foco será no curto, médio ou longo prazo “Muitas pessoas começam a investir por influência de amigos e colocam tudo em uma coisa só. Nesse caso, nosso trabalho é realocar até equilibrar a carteira. Outro erro comum é pensar apenas na rentabilidade, mas não refletir sobre os objetivos do investimento”, diz Rejane Tamoto.
Por este motivo, o fundador da Fortuna Investimento ressalta a importância do cliente diversificar o portfólio e sempre fazer alocações adequadas ao seu perfil, o que vai proporcionar um crescimento relevante do patrimônio ao longo do tempo de modo a garantir que o projeto traçado se cumpra. “O cliente em geral não está preocupado com riscos. Por isso, é essencial contar com o suporte de um profissional qualificado, capaz de fazer uma gestão técnica a partir de indicadores”, aponta Jorge de Almeida Silva.
Depois de readequar os investimentos e equilibrar o portfólio, é o momento de se proteger contra imprevistos. Afinal, de que adianta poupar e estabelecer uma série de metas se a qualquer momento um evento fortuito pode colocar tudo por água abaixo? Um dos passos mais importantes nesse sentido consiste em criar uma reserva de emergência à qual se pode recorrer em caso de problemas. Isso evita, entre outras coisas, que o rendimento das demais aplicações seja prejudicado.
“Os clientes fazem a alocação pensando apenas no lado bom. Porém, caso algo dê errado e a pessoa necessite do capital, ela não tem outra opção a não ser sacar, e se desfazer de ativos em um momento desfavorável pode trazer grandes prejuízos”, aponta Rejane.
Outro ponto de atenção que o planejador costuma levantar está no fato de as pessoas pensarem apenas em morte quando se fala de seguros. Contudo, uma série de outras questões também podem comprometer a capacidade financeira da família, como invalidez ou uma doença grave que incapacite para o trabalho durante um período.
Daniella Rolim, profissional CFP®, sócia e head de Growth da Flap Capital, cita o caso de uma cliente para quem o seguro se mostrou essencial ao adoecer. A apólice custeou tratamento, enfermeira e medicamentos, além de compensar a perda de renda pelo afastamento das atividades profissionais durante a recuperação. Em outras palavras, a proteção foi essencial para ela não comprometer o plano estruturado para a família.
“A gestão de riscos é o guarda-chuva do planejamento financeiro. Se algo acontecer no meio do caminho, é isso que garante a continuidade da estratégia. Por muito tempo, os bancos estimularam vendas casadas de seguro apenas para cumprir metas, mas sem olhar as reais necessidades do cliente. O planejador busca entender a vida de cada indivíduo e encontrar a melhor solução para que ele esteja coberto quando algo surgir”, afirma.
Além de cortar gastos desnecessários, outra maneira de fazer com que sobre mais dinheiro para formar um patrimônio é otimizar os custos com tributos. Mais do que simplesmente buscar alíquotas menores, dar uma atenção especial a esse aspecto ajuda a evitar problemas com a Receita Federal.
“Os clientes cometem erros sem nem perceber, como colocar toda sua receita na pessoa jurídica enquanto continuam tendo despesas na pessoa física, não declarar investimentos e acrescentar bens em nome de terceiros. Porém, poucos consideram que uma declaração errada pode resultar em multas capazes de atrasar sua aposentadoria em alguns anos”, alerta
Marco Túlio Jota, planejador financeiro CFP® e sócio da Fortplan.
Além da preocupação com eventuais sanções, mudanças simples na declaração do IR também trazem benefícios consideráveis. Como exemplo, Túlio recorda um casal cujos filhos figuravam como dependentes da esposa, autônoma, enquanto o marido declarava apenas seus rendimentos como CLT. No entanto, após fazerem uma simulação, os dois descobriram que passar as crianças e principais despesas para o nome dele resultaria em deduções significativas na base de cálculo. “Um bom planejador é capaz de encontrar fragilidades e também realizar ajustes que tragam economia com tributos”, completa.
Com as contas organizadas e os valores poupados rendendo bem em investimentos, é hora da família olhar adiante para garantir o futuro dos filhos e uma velhice em que os pais mantenham o padrão de vida. Para isso, o planejador irá analisar a capacidade de poupança e estabelecer um plano de longo prazo alinhado aos objetivos almejados.
“A maior dificuldade é conseguir poupar hoje para algo que parece tão distante. As pessoas começam a ter essa preocupação apenas depois dos 40, quando o pique cai e o mercado de trabalho se torna mais restritivo. Mas quanto mais cedo pensarmos na aposentadoria, menor será o esforço mensal para chegar lá, pois o tempo joga a favor”, explica Luciana Ikedo, profissional com certificado CFP® e sócia da RV4 Investimentos.
Para executar esta etapa, mais uma vez entram em cena os números. O primeiro passo é projetar quando o cliente deseja parar de trabalhar e qual será sua expectativa de vida com base em dados oficiais e no histórico familiar de saúde. A seguir, é preciso estabelecer a renda mensal esperada para a aposentadoria. Por fim, o planejador irá determinar os aportes mensais para se chegar a esta receita considerando o tempo que falta para o cliente se afastar das atividades e a rentabilidade esperada para os investimentos.
“Quando a pessoa deixa de fora a preocupação com o longo prazo, seu eu do amanhã fica desprotegido. É um erro imaginar que a renda do trabalho será eterna. Além disso, depender exclusivamente do INSS pode reduzir o padrão de vida na terceira idade, que é quando mais precisa de segurança e tranquilidade”, opina Luciana.
Finalmente, depois de se programar para constituir um patrimônio capaz de deixar a família em situação confortável, é preciso pensar em como transmitir isso para as próximas gerações de modo eficaz e com o mínimo de perdas. “Ninguém gosta de pensar no tema, mas a morte envolve uma série de custos como velório e caixão. Além disso, o ITCMD (Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação) varia bastante de acordo com a região. Em alguns estados, a alíquota é de 4%, enquanto em outros chega a 8%”, afirma Bruno Ramacini, CFP® e especialista em treinamento de performance para assessores de investimento.
Outro ponto geralmente esquecido, mas cujas despesas podem vir a comprometer até 20% do patrimônio, é o inventário. No caso de grandes fortunas, a falta de um planejamento adequado pode fazer com que o processo se arraste por anos. Afinal, quando se trata de uma herança de R$10 milhões, por exemplo, os herdeiros precisam ter cerca de R$2 milhões em mãos para arcar com todos os custos. “Em alguns casos, a única forma de levantar o dinheiro necessário é vender bens às pressas e por um valor abaixo do praticado no mercado”, revela.
Para evitar todos esses problemas, um bom planejador recorre a soluções com liquidez imediata capazes de cobrir os custos de sucessão, como seguros ou previdência. Há ainda a opção de realizar doações aos descendentes em pequenas parcelas ao longo da vida, ou mesmo criar uma holding familiar em que o dono passa os bens a uma PJ e distribui cotas entre os herdeiros, que se tornam sócios.
“Há pessoas que passam a vida toda cuidando de orçamento, tributos, realizam bons investimentos, mas perdem boa parte disso por não pensar na sucessão. Embora não pareça, essa é a parte do planejamento que pode trazer os ganhos mais significativos. Quanto mais bem sucedido é o trabalho nas outras cinco áreas, mais relevante se torna a sucessão. Da mesma forma, maiores serão as dores de cabeça para quem não se programar”, aponta Ramacini.
A atuação do planejador não termina depois de montar uma estratégia e implementar ações em todas as seis áreas. Por se tratar de uma iniciativa voltada para a vida do cliente, pode-se dizer que, na verdade, seu trabalho nunca tem fim. No entanto, uma vez estabelecidas as diretrizes e com o engajamento dos membros da família em relação ao plano, caberá ao profissional apenas monitorar os resultados e fazer ajustes.
Esse acompanhamento pode ser estabelecido de forma periódica em comum acordo com o cliente. Outra opção é o profissional orientar a pessoa a procurá-lo em caso de mudanças significativas, como uma gravidez, separação ou troca de emprego. Deste modo, é possível manter as ações sempre alinhadas com o contexto e os objetivos de cada família, que são as premissas básicas para que o planejamento financeiro de fato gere resultados duradouros.
“Nosso papel enquanto associação é educar a população e mostrar que existem pessoas qualificadas para fazer um bom aconselhamento. Assim, esperamos fazer do planejador financeiro uma profissão capaz de transformar cada vez mais vidas no Brasil”, encerra Paulo Colaferro, presidente da Planejar.